6 de dezembro de 2017

O que é arte?


Há tanta polêmica sobre o assunto hoje em dia que resolvi também dar minha opinião. Um museu expõe um homem nu interagindo com crianças e, quando a “obra” é criticada, os defensores acusam esses críticos de não entenderem nada de arte.

No entanto, não há uma definição clara sobre o que é arte. Na antiguidade, foi criada uma divisão das artes em tipos de acordo com suas aplicações. Assim, a primeira arte seria a música, que explora o som; a segunda, o teatro, incluindo aí a dança, por explorar o movimento,; a terceira,  a pintura, que explora a cor; a quarta, a escultura, explorando o volume; a quinta, a arquitetura e a exploração do espaço; e, por fim, a sexta, a literatura, exploradora da palavra.

No século passado, Riccioto Canudo escreveu um manifesto e atribuiu ao cinema o status de “sétima arte”, por agrupar diversos aspectos das demais. Daí por diante, novas classificações enumeram a oitava arte como sendo a fotografia; a nona, os quadrinhos; a décima, os jogos de computador; e a décima primeira, a arte digital. Não vamos entrar no mérito do valor dessas classificações. Deixemos isso para outro artigo.

Mas o que define a arte? Se for somente a exploração da cor, do som, do movimento, do espaço, do volume e da palavra, então tudo é arte. Nosso caminhar, nossas conversas, uma ata de reunião, a rua, uma árvore, enfim, tudo que tenha cor, som, movimento, palavras, volume e espaço.

“Tudo é arte”. Essa frase é repetida como mantra por alguns que defendem formas “incompreendidas” de arte. Marcel Duchamp, ao apresentar ao mundo sua polêmica “Fonte”, abriu a discussão sobre o que é e o que não é arte. A questão é: tudo “é” arte, ou tudo “pode ser” arte?

Se excluirmos os usos metafóricos da palavra arte (a arte da guerra, a arte de conquistar clientes, a arte de ser popular, aquela criança fez arte, etc.) o dicionário traz, entre outras definições, a seguinte:

“Produção consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana.”

É uma definição bastante vaga e, por isso mesmo, limitada, que exige complementos e explicações. Como não há uma versão definitiva e inquestionável sobre “o que vem a ser arte”, então a discussão “tudo é” versus “tudo pode ser” continua gerando polêmica e discussões. Por exemplo, como fica a dança nessa definição, se a dança não é obra, nem forma, nem objeto? A produção é arte, mas o produto, não?

Eu venho dar minha contribuição na tentativa de ajudar a conceituar algo tão abstrato como arte e separar o joio do trigo.

Se é difícil criar um conceito, sigamos no sentido contrário e tentemos identificar o que há de comum naquilo que consideramos arte e naquilo que desprezamos como lixo. Na região nebulosa entre esses extremos ficam as tentativas de se criar arte, a arte ruim, e outras produções questionáveis.

Para começar, a arte tem de ser intencional. Os rabiscos de uma criança numa folha de papel não é arte. As manchas de tinta num avental não constituem arte.

A arte tem que provocar algum reflexo no senso estético do observador. Ela é feita para ser vista, ouvida ou sentida de alguma forma e provocar algum tipo de sentimento no receptor. Esse efeito não precisa, necessariamente, ser a beleza como reflexo primário da obra. Uma foto de uma pessoa feia pode causar reações negativas, desgosto, nojo… Mas, indiretamente, a beleza está na capacidade do artista em captar a iluminação que realça as rugas, em mostrar um sorriso em meio à miséria, em denunciar o sofrimento a quem vive numa ilha de conforto. A beleza está em causar a emoção no público, levar a várias interpretações, propor o questionamento, desde que isso tudo, como já disse, seja intencional. Assim, uma gravura de uma lata de sopa de tomate, um bidê autografado e denominado “A Fonte”, ou um desenho de uma praça cheia de bandeirinhas de São João são formas de arte. Um homem nu se expondo numa sala, não.

Em todo caso, a arte é um trabalho. E, como tal, exige um esforço do artista. Se não um esforço físico, como uma escultura de Davi em mármore, pelo menos o esforço intelectual de chamar o bidê de fonte para provocar questionamento ou reflexão. Quando não há esforço laboral nem cognitivo na produção da arte, como uma pichação ou um mero respingar de tinta numa tela, então não é arte.

Pode acontecer de a arte não ser reconhecida como tal por estar fora de contexto ou exposta ao público errado. A arte nem sempre é universal. Pode exigir explicações. Quando se expõe diversas obras das mais variadas origens e formas, expondo relações sexuais homoafetivas, com animais ou violentas para menores de idade e sem contextualização, então dois erros foram cometidos: público errado e falta de explicação. Nesse caso, o que era arte deixa de sê-lo. Vira zona.

Podemos dizer que transformar uma latinha de refrigerante numa lamparina, um tricô, um crochê, uma renda, ou uma campanha publicitária bela e emocionante são trabalhos que possuem mais teor artístico do que muito daquilo que é exposto em galerias, mesmo que não sejam chamados de arte.

Não basta dizer que é arte. É preciso reunir essas características:

·         Esforço consciente;
·         Possuir atributos de beleza de forma direta ou indireta;
·         Promover a crítica, a reflexão ou a admiração;
·         Estar inserida num contexto;
·         Ser destinada ao público correto.

Vejamos se, com isso, podemos resumir a arte numa definição única.

“Arte é o produto ou execução de um esforço consciente do artista na intenção de transmitir uma reação no senso estético de uma plateia adequada e dentro de um contexto claro, promovendo a crítica, a reflexão ou a admiração da obra.”

Essa definição parece evitar algumas falhas da definição anterior, e não tenho a pretensão de tomá-la como definitiva. Estou aberto a comentários, questionamentos e sugestões.


O que você considera arte? Se encaixa nessa definição?

27 de julho de 2017

A "senhorita" está em coma.

Excepcionalmente, publicarei este artigo nos meus dois blogs. Ele diz respeito a ambos, porque trata de língua portuguesa e não deixa de ser um pitaco, uma opinião.

A palavra “senhorita” está fadada a desaparecer. Ela não tem mais sentido. Seus dias estão contados.

E por que eu digo isso?

Num passado não muito remoto, o papel da mulher na sociedade era ser propriedade do homem. A forma como isso se dava diferia de uma região pra outra. Em alguns lugares a submissão era total. O homem fazia o que bem entendia e a mulher acatava. Silenciava, obedecia e até apanhava. Em outros, havia uma submissão mais velada. Embora houvesse uma aparente liberdade, elas eram educadas para cuidar da casa enquanto o homem trabalhava. Seus brinquedos eram bonecas, fogões, pias. Quando um pouco maiores, ajudavam a mãe a lavar a louça enquanto os meninos iam jogar bola.

O sonho dessas mulheres era conseguir um bom casamento. Ainda assim, muitas vezes nem eram elas que faziam a escolha. No casamento elas mudavam de dono. O pai passava a propriedade da filha para o genro, seu novo dono. Isso ainda é representado nas cerimônias de casamento, em que o pai conduz a noiva ao altar e a entrega ao noivo.

Mas vivemos um tempo em que, felizmente, isso está mudando. Felizmente, porque é importante acontecer, embora não aconteça de forma tão rápida nem fácil. O machismo e o paternalismo ainda estão muito enraizados na cultura de homens e, lamentavelmente, também de mulheres.

E é nesse ritual matrimonial que a palavra “senhorita” se manifesta. A mulher era senhorita enquanto propriedade do pai. Como num cenário de hierarquia, senhorita era uma posição subordinada aos pais: o senhor e a senhora. Após o casamento, ela subia de hierarquia, supostamente no mesmo nível hierárquico do seu marido e senhor. Friso: supostamente.

Chamo ainda a atenção para o fato de que o filho do casal, quando estes tinham um funcionário ou empregado, era tratado por senhor. Nunca existiu um “senhorito”.

No cenário que temos hoje, a mulher já não precisa sonhar com um casamento para ter uma ilusória independência dos pais. Há alternativas. Há um mercado de trabalho em que elas podem se tornar senhoras sem depender de um casamento em que apenas transferirão a relação de dependência. E esse mercado é crescente. Antes era limitado a magistério, enfermagem, serviços domésticos, artes e prostituição. Mais tarde, garçonetes e comissárias. As mulheres provaram ao mundo que elas podem ser também médicas, engenheiras, pilotas, empresárias, mecânicas, atletas, marceneiras, tudo. Elas têm capacidade física e intelectual para exercer qualquer ofício que desejem. Então, se ela for uma profissional solteira, independente financeira e socialmente de seus pais, qual a finalidade de serem chamadas de senhoritas?

Essas mulheres são senhoras. Não por estarem ligadas a um senhor que as governe, mas por terem autoridade sobre a própria vida, por fazerem suas escolhas sem precisarem pedir bênçãos a ninguém.

O termo “senhorita” está ficando restrito. Seu valor está mais atrelado à idade que ao estado civil. Eu me recuso a chamar uma mulher independente, adulta, de senhorita, apenas pelo fato de ela não ter se casado. Para mim, essa mulher é uma senhora. Ela dirige a própria vida. É dona de si.

E não vejo por que a criança, ainda no seio familiar, precise dessa diferenciação. Se o irmão dela é tratado por senhor (ou senhorzinho), ela bem pode ser senhora (ou senhorinha). Afinal, em relação aos empregados da família, elas são patroazinhas também.

Ao final, o termo ficará moribundo, respirando por aparelhos ligados aos concursos de beleza. E, ainda assim, em inglês, o que torna a palavra ainda mais apagada.


Descanse em paz, “senhorita”.

11 de abril de 2017

Americano ou Estadunidense?


Tenho visto com muita frequência o uso da expressão “estadunidense” para se referir a quem é natural dos Estados Unidos da América (ou apenas Estados Unidos). E discordo veementemente dessa moda que se alastra.

Ora, vejamos. O país se chama Estados Unidos da América (United States of America). Ele nasceu da união de treze estados confederados, formando uma confederação que recebeu essa denominação. O termo “Estados Unidos” é uma expressão que indica o tipo de formação política do país, mas não é o seu nome. O nome do país, de forma abreviada, é América. Da mesma forma que o nome completo de nosso país, a que chamamos carinhosamente de Brasil, é República Federativa do Brasil.

Ainda assim, quem aqui nasce é chamado “brasileiro”, e não “republicafederativense” (ou algo do tipo). Vejamos outros exemplos. Quem nasce na República Popular da China é chinês, não “republicapopularense”. Quem nasce na República Federal da Alemanha não é “republicafederalense”, mas alemão. Então por que chamar quem nasce nos Estados Unidos da América de “estadunidense” ao invés de, simplesmente, americano?

Alguns dirão que americano é quem nasce no continente América. De fato. O continente se chama América. Aliás, são três continentes. Quem nasce na América do Sul é sul-americano, quem nasce na América Central é centro-americano e quem nasce na América do Norte é norte-americano. As pessoas que defendem esse posicionamento acreditam que falar dos americanos é falar dos norte-americanos. Porém a América do Norte compreende três países: Canadá, América e México. Nela também se encontram quatro territórios: as Bermudas (do Reino Unido – que, aliás, se chama Reino Unido da Inglaterra e da Irlanda do Norte), a Groenlândia (da Dinamarca), a Ilha de Clipperton (da França) e Saint Pierre et Miquelon (também da França).

Seria um problema, então, chamar americano quem nasce nos Estados Unidos da América? Isso criaria tamanha confusão que você poderia pensar que um americano poderia ser alguém natural de Groenlândia? Claro que não. Aliás, o próprio povo americano se refere a seu país como América (assim como nós chamamos o nosso de Brasil). Aceitem: esse é o nome do país. Se podemos aceitar que há dois lugares chamados São Paulo, um estado e uma cidade, e da mesma forma há dois Rios de Janeiro, por que não aceitar que há uma país chamado América que fica dentro do continente Americano.

Mas como saberemos, então, de onde é a pessoa quando o chamamos de americano? Ora, normalmente nós identificamos a origem da pessoa pelo país, e não pelo continente. Se a pessoa nasce no México, não o chamamos de norte-americano nem de americano. Chamamos de mexicano. Se nasce no Peru, não dizemos que é americano, sul-americano ou latino-americano. Dizemos que é peruano.

Enfim, essa mania de chamar os americanos de “estadunidenses” é, para mim, um preconceito xenofóbico que tenta descaracterizar a legitimidade de tudo que vem daquele país. Há tanta gente que fala mal dos americanos sem sequer conhecer o país. E não me refiro apenas aos parques de diversão fantásticos e aos paraísos das compras. É um povo trabalhador, com uma rica cultura, que mora num território imenso de ricas belezas naturais. Não desmereço com isso nada do que temos de bom aqui no Brasil, mas reconheço que a América é, também, um lugar belo e rico, tanto geográfica como culturalmente.

Portanto, quem nasce na América – nos Estados Unidos da América – é americano. Não tente distorcer essa verdade e mudar o que o mundo inteiro reconhece e tentar fazer parecer que só os brasileiros estão certos ao chama-los por um termo que ninguém no mundo usa: estadunidense. Isso não existe. É invenção.

Enfim, só por curiosidade, o nosso próprio país já se chamou um dia Estados Unidos do Brasil. E nem por isso quem nasceu aqui naquela época deixou de ser brasileiro.

2 de abril de 2017

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30 de março de 2017

Os Novos Enlatados

Quando eu era adolescente, lembro que dávamos o nome de enlatados para produtos televisivos que eram apresentados na TV aberta. Acredito que tinham esse nome por serem produzidos nos Estados Unidos da América, serem fortemente imbuídos da cultura daquele país e servirem como divulgação e propaganda do American Way of Life.

Não sei se concordo com o termo para esse tipo de produto. Afinal, que tipo de cultura era esperado num produto produzido naquele país? Seriam os filmes de Bollywood também enlatados indianos?

Deixando aqueles enlatados de lado, acredito que hoje esse termo pode ser usado com muito mais propriedade para designar um outro tipo de produto. E esse produto é veiculado principalmente nas redes sociais e comunicadores instantâneos.

Sabe aquele grupo da família no Whatsapp? Sabe aquelas mensagens de Bom Dia que são enviadas todas as manhãs, invariavelmente, nesses grupos? Você acha que aquela sua tia que enviou a mensagem usou algum aplicativo para juntar a foto das flores com o texto de auto ajuda que veio na mensagem? Não. Ela pegou pronto de algum site ou repassou de outro grupo. E como chamamos àquilo que vem pronto para o consumo? Enlatado.



Pois bem. Junto com essas mensagens de Bom Dia, podemos colocar no mesmo balaio as correntes, as mensagens apocalípticas, os alertas do tipo “passe para todos os seus contatos”, as mensagens do gatinho de voz fina, as “videocassetadas”, e até os “pensamento do dia”. Tudo isso está pronto a ser repassado e se tornar viral. Há sites especializados em produzir esses conteúdos.

Há também as declarações de amizade e amor infinito que costumam terminar com “Passe para as pessoas que você ama, inclusive eu, se me amar”. Esse é o cúmulo do cúmulo! Mandar uma mensagem pronta pra um amigo e pedir que ele mande de volta pra você? Tem dó, né? Eu já não respondo as mensagens de Bom Dia, por serem enlatadas (ainda se fossem, no mínimo, digitadas por quem enviou…), imagina se vou mandar de volta uma mensagem que, claramente, a pessoa me repassou depois de receber de alguém. E, possivelmente, nem leu inteira.

Então, para aqueles que me acham insensível ou sem amor no coração por não responder os Bons Dias nem mandar de volta as mensagens que devem ser enviadas a quem se ama, está aqui a prova de que gosto de você. Dei-me o trabalho de escrever todo esse texto, que não copiei de lugar algum nem recebi pronto, para dizer que não respondo enlatados e que isso não significa que eu não goste de você. Significa apenas que eu tenho por princípio não repassar coisas prontas como se fosse algo pessoal.

Repasso, sim, piadas que acho engraçadas, textos que acho interessantes, mas sem dar a entender que aquilo é pessoal para alguém ou que eu o fiz pensando em alguém.

Obrigado pela compreensão.

(Coloque aqui seu nome e passe para todos os seus grupos de WhatsApp, ou cole no seu Facebook)

7 de março de 2017

A carranca e a tolerância


Preciso confessar que nem sempre meu raciocínio é rápido. Há vezes em que uma situação me incomoda e fico sem saber o porquê, ou sem resposta imediata para dar. Quando isso acontece, o assunto fica em minha cabeça martelando, como a dizer: “reflita, reflita, reflita”.

No ano passado participei de um evento em um clube de jovens católicos do qual meu filho fazia parte. Foi num fim de semana com a participação dos pais. E na hora do almoço, muitos assuntos vinham à baila.

Em certo momento, um desses pais — felizmente não me lembro do nome dele, assim não corro o risco de revelá-lo acidentalmente — chamou a atenção de todos para uma peculiaridade sobre a sede do clube. Havia na porta de entrada uma carranca: uma dessas esculturas entalhadas em madeira que eram usadas na proa de barcos que percorrem os rios das regiões norte e nordeste do país. Ele alertava sobre o perigo daquele símbolo pagão e a incompatibilidade dela com os objetivos das reuniões feitas naquele clube. Ele descreveu em detalhes que nem vale a pena lembrar o significado daquele símbolo para a cultura do povo que o produziu, sugerindo que o retirássemos.

Um dos responsáveis pelo clube alertou que a casa era alugada de um advogado que a cedeu para o clube, sem nada dela retirar, com a condição de que se zelasse pelos bens ali constantes. Toda a mobília, incluindo luzes, utensílios de cozinha, obras de arte e um imenso acervo bibliográfico foram confiados à administração do clube.

Esse homem insistiu que a carranca deveria ser removida e sugeriu que alegássemos ao proprietário que ela caiu da parede e se quebrou.

E foi esse o episódio que ficou martelando em minha cabeça durante toda uma semana. Após refletir bastante, cheguei à seguinte conclusão. O que era mais incompatível com os propósitos do clube: uma obra de arte, manifestação da cultura de um povo, que simbolizava uma suposta crença pagã, mas que naquele meio nada mais era do que um registro artístico, cultural e histórico, ou o ato de destruir uma propriedade privada deixada sob seu cuidado, encobrindo-a com uma mentira?

A carranca pode ter tido, no passado, um significado místico. Segundo as crenças de quem a esculpiu, sua cara enfezada espantava os maus espíritos e assombrações que amedrontavam os barqueiros que navegavam pelos rios. Hoje ela nada mais é que uma lembrança dessa era e pode, inclusive, ser usada para orientar as crianças que frequentam o clube sobre diversidade cultural, multiplicidade de crenças e tolerância.

Por outro lado, num lugar onde se busca educar as crianças numa fé cristã, a proposta de quebrar o objeto e mentir ao dono sobre o ocorrido é uma atitude totalmente contrária ao que é pregado ali. E o que me incomodou, entendo agora, foi o fato de ninguém se manifestar contrário a essa proposta. Ninguém questionou, criticou ou se opôs. Eu, inclusive.


Espero com esse texto corrigir meu erro, expondo minha aversão à sugestão desse pai.  Incoerente seria se render a uma superstição presente apenas em seu preconceito e cometer um ato abominável ao espirito cristão. A carranca nada mais é do que madeira entalhada. Acreditar que ela seja portadora de espíritos que prejudiquem ao clube é crendice. Acredito que ela deva ser mantida não só em respeito ao seu legítimo proprietário, mas também em respeito aos valores que ali são pregados.

25 de fevereiro de 2017

Meritocracia

Um conhecido meu veio criticar a meritocracia em uma postagem que fiz no Facebook. O argumento dele era de que, por mais que a pessoa se esforce, quem está realmente lá embaixo na cadeia alimentar da sociedade não tem chances de crescer. Concordo que para muitas pessoas as barreiras sejam muito maiores. Uma pessoa que mora na favela, sem luz nem esgoto, tem muito mais dificuldades para concluir um curso superior que uma pessoa que teve condições de pagar por uma escola de qualidade, que não precisou de transporte público e que tinha um plano de saúde que não o obrigava a esperar em filas.

Mas, apesar dos argumentos dele, eu ainda acredito na meritocracia. Porque eu sei que minha mãe foi pobre, muito pobre, e conseguiu se formar em medicina. Eu sei que estudei muito pra entrar numa faculdade super concorrida apesar de muita gente ficar falando que era impossível. Eu sei que aquela menina, a Bruna, que passou em primeiro lugar na medicina da USP também ralou de estudar (http://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/02/jovem-negra-e-pobre-que-passou-em-1o-lugar-no-curso-mais-cobicado-do-brasil.html). Apesar do crédito que ela dá ao cursinho que fez, com professores que eram alunos da faculdade, quem estudou pra fazer a prova foi ela. Foi ela que procurou o cursinho e se inscreveu nele por saber que a escola pública não a prepararia adequadamente para o vestibular. Foi ela que percebeu que não tinha ido bem no ENEM e se inscreveu na Fuvest pra ter uma chance a mais de entrar. Foi ela que ficou ali diante da prova queimando os neurônios pra resgatar o conhecimento que ela sabia estar em algum lugar de sua memória. Não foi o cursinho que fez a prova pra ela. Não foi o cursinho que passou no exame e conquistou a vaga. Foi ela. Se ela não quer acreditar que teve esse mérito, o tempo talvez se encarregue de fazê-la mudar de ideia.

Pois na faculdade ela terá uma grande vantagem sobre seus colegas. A dedicação que ela precisou dar aos estudos foi muito maior que a da maioria de seus colegas aprovados. Ela já tem um aprendizado que muitos ainda sofrerão pra adquirir. Ela aprendeu a estudar, a buscar o conhecimento por conta própria, pois na faculdade as lições não virão mastigadinhas como num cursinho preparatório. Nesse processo, alguns vão bombar, outros vão sofrer, e ela vai seguir como um maratonista que deixa os demais corredores vários metros para trás. Não que ela vá ter mais facilidade. Ela vai suar como todo mundo, mas estará com mais preparo.

Ainda assim, os argumentos desse amigo me martelavam a cabeça, pois realmente algumas pessoas vão ter barreiras muito maiores que outras. E fiquei raciocinando sobre esse argumento para chegar à conclusão que apresento aqui.

O mundo é injusto. Não tenho mais ilusões a respeito disso. Vai ser difícil mudar essa condição. Há lugares onde essa injustiça é menor. No Brasil, é enorme. E o argumento dele aponta pra essa injustiça, não pra meritocracia. O exemplo da Bruna mostra que a meritocracia em que acredito continua válida. As barreiras para ela são maiores por conta da injustiça, mas não porque a meritocracia é uma falácia (http://jornalggn.com.br/fora-pauta/o-mito-da-meritocracia).

A própria menina acredita nessa meritocracia, afinal ela lutou e enfrentou barreiras enormes para conquistar o seu espaço. Lutou mais do que outros, com posses. Mas lutou. Se ela, realmente, não acreditasse que era possível mudar sua condição socioeconômica, pra que se esforçaria tanto? Esse mesmo colega, estudou engenharia pra quê? Cinco anos de sacrifício apenas por amor ao conhecimento? E por que mudou de emprego para uma função mais elevada e com salário maior? Não foi porque ele acredita que tem valor e direito a uma condição melhor que aquela em que estava?

No dicionário, meritocracia significa a crença de que as pessoas com mais valor (mérito) conquistam as posições de maior poder. É a lei da selva aplicada à sociedade civil: a lei do mais forte. Não necessariamente o mais forte fisicamente, mas o mais preparado, o mais adaptado. Seleção natural in natura. Numa sociedade injusta e corrupta como o Brasil, o mérito, muitas vezes, reside na capacidade de roubar sem ser apanhado. Porém eu me recuso a aceitar isso como uma condição permanente. Nós, cidadãos honestos, devemos nos unir pra lutar contra isso. Devemos continuar lutando pra reduzir a desigualdade de condições. Quem usa de desonestidade numa competição é trapaceiro. Isso vale pra quem cola na prova, quem pede ou dá atestado médico falso, quem fura fila, quem pede nota maior que o valor da refeição para ser reembolsado pela empresa... É isso que vai mudar o Brasil? Não. Mas isso tudo é um reflexo da injustiça que impera nessa nossa sociedade. Devemos lutar pela punição dessas injustiças, inibi-las. Aí, talvez, as pessoas comecem a valorizar os políticos que não são corruptos, mesmo que eles não sejam aqueles com melhores discursos, que prometem mais nas campanhas ou que compram votos. Aí, talvez, o povo vá às ruas por políticas anticorrupção e por regras igualitárias para humildes e poderosos.

Criticar a meritocracia é um discurso esquerdista que defende um Estado inchado e populista, protecionista, que se intromete em tudo e não dá liberdade para as coisas se ajeitarem por conta própria. De acordo com uma visão Marxista (https://medium.com/@marcelorcampos/marx-o-maior-defensor-da-meritocracia-b3c4b84154fa#.t0ut90m2m) do trabalho, seu valor seria proporcional ao esforço nele empregado. Essa teoria já foi refutada pelos economistas, que afirmam, e a experiência comprova, que o valor de um trabalho está ligado à sua utilidade. O exemplo mais ilustrativo disso é que se um homem gasta doze horas numa marcenaria fabricando uma mesa, e outro gasta quinze horas cavando um buraco, as pessoas ainda pagarão mais pela mesa que pelo buraco. Portanto, o trabalho é recompensado pela sua utilidade, e não pelo esforço nele empregado.

Há uma historinha sobre um trabalhador que foi se queixar ao chefe, pois um funcionário recém contratado fora promovido antes dele, que já estava na empresa havia anos (https://atitudereflexiva.wordpress.com/2009/09/04/a-licao-do-abacaxi/). Essa história também ilustra bem como o valor está associado à utilidade e não ao tempo ou esforço empregado.

Vejam que Marx defendia o valor do trabalho de acordo com o esforço pois essa crença era necessária para defender seu ponto de vista: a mais-valia, a exploração da mão-de-obra e a luta de classes. E onde fica a meritocracia, então?

Indo de encontro às teorias marxistas, o ser humano reage, basicamente a estímulos. Sem incentivo, o ser humano não produz. E esse é o principal motivo pelo qual o socialismo e o comunismo nunca deram certo em lugar nenhum. Quem é que vai querer estudar cinco anos de engenharia, seis de medicina, ou até dois anos de educação física, pra ganhar o mesmo que um trabalhador que exerce uma função que não exige nenhuma qualificação? Quer um exemplo? Imagine um restaurante. Nesse restaurante há o chef, os cozinheiros e os faxineiros. O chef ganha mais que os cozinheiros que, por sua vez, ganham mais que os faxineiros. Mas todos trabalham o mesmo número de horas por dia. Um faxineiro, então, lidera uma greve pois percebe que seu trabalho é importantíssimo para o restaurante, já que a vigilância sanitária pode fechar o restaurante se as condições de higiene não forem adequadas. Eles entram, então, em greve e, por um dia, o restaurante vira um caos. O chef redistribui o trabalho e põe alguns cozinheiros para fazerem a faxina, afinal a vigilância sanitária está sempre de olho. Todos os cozinheiros, inclusive o chef, nesse dia se sacrificam demais, mas o restaurante sobrevive. No dia seguinte o que acontece? O restaurante fecha? Mais alguém entra em greve? O chef pede as contas? Nada disso! Tudo volta à rotina anterior pois o chef contrata novos faxineiros e coloca os grevistas na rua. Mas e a importância do trabalho dos faxineiros? Não era essencial para o restaurante? Sim, mas não exige qualificação. Há muitas pessoas procurando emprego que nunca pegaram numa vassoura, mas diante da necessidade estão dispostos a aprender e trabalhar no restaurante.

Continuando, por que os cozinheiros ganham menos que o chef? Porque o chef é quem cria os pratos, desenvolve os processos de produção e coordena a cozinha. Os cozinheiros são capazes de fazer tudo isso? Certamente, com o aprendizado e a experiência, um dia serão. E nesse dia serão convidados a serem chefs em outros restaurantes ou abrirão seus próprios negócios. Isso é meritocracia. Mas enquanto não tiverem preparo suficiente, o chef é quem ditará o sucesso da cozinha.

Veja que nem todo mundo pode abrir um restaurante bem-sucedido. Mas isso não tem nada a ver com meritocracia. Aquele que pode, é porque focou em seu objetivo, juntou dinheiro pra montar o restaurante, foi cozinheiro por vários anos e aprendeu o que pôde, cada detalhe do negócio, observando, obedecendo, experimentando, errando e tentando de novo até acertar. Um outro podia até cozinhar bem, mas se não aprendeu coisas novas, se não experimentou novos sabores e temperos, se não praticou em casa seus próprios pratos, então ele não se esforçou, não teve mérito. Talvez até tivesse dinheiro pra abrir seu restaurante, mas será que duraria? Faria sucesso?

Então, o fato de o mundo ser injusto não significa que a meritocracia é uma ilusão. Significa que o mundo é injusto, só isso. As pessoas não começam a corrida com a mesma velocidade inicial. Alguns até a começam vários passos à frente. Os que estão atrás terão de correr mais para alcançá-lo. Mas assim como na fábula da lebre e do jabuti, algumas lebres dormirão no ponto e serão fatalmente ultrapassadas. A diferença em relação ao mundo real é que, à medida que avança na pista, o jabuti vai ficando mais equiparado à velocidade das lebres por que vai passando.

Concluo que o posicionamento desse colega contradiz suas atitudes. Apesar de criticar a meritocracia e defender que ela não existe, ele não age de acordo com esse ponto de vista. Afinal, ele acabou de mudar de emprego em busca da ascensão social e econômica que julga merecer. Mas se a meritocracia, como ele diz, não existe, por que o esforço. Ah! Mas ele tem facilidades, teve oportunidades que outros não tiveram! Sim, concordo. Mas se a meritocracia não existe, pra que se esforçar? Ora. Porque ele sabe que se ficar parado, os jabutis vão começar a ultrapassá-lo. E ele sabe também que há algumas lebres preguiçosas na frente dele, que ele pode vencer.


Pois eu digo que, assim como a Bruna, que passou em primeiro lugar na medicina da USP, ele também acredita em meritocracia, por mais que negue. Seus atos o comprovam.