22 de março de 2020

Depois da pandemia (uma crônica)


Estamos em dezembro de 2020 e, assim como ocorreu em março e abril, estamos com uma superlotação dos hospitais. Dessa vez não é por conta de nenhum vírus mortal nem medo de contágio. Vivenciamos mais um baby boom.



O noticiário da TV entrevista uma mamãe que acaba de ganhar trigêmeos – uma menina e dois meninos:
— Foi uma surpresa para a senhora nascerem três de uma vez?
— Olha… Pelo tempo que ficamos presos dentro de casa, eu nem me espantaria se na semana que vem nascerem mais alguns…
— E a senhora já escolheu os nomes.
— Já. A menina será Maria Corona, e os meninos serão Virusley e Arco Gerson.
O mais surpreendente é ver como o mundo mudou. Acostumamo-nos a ficar em casa. Empregos desapareceram e outros cresceram vertiginosamente. Hoje parece que todo mundo é entregador, artista ou youtuber. As assinaturas de TV por streaming cresceram tanto que a maioria das séries já foram maratonadas e zeradas por quase todo mundo. Estúdios de animação estão ficando milionários, porque os atores ainda não querem ir pros estúdios. Aqueles que se arriscam são evitados nas ruas e clamados na TV. Sem contar que os filmes mudos estão voltando à moda por falta de coisa nova.
Aulas de tricô e crochê estão em alta nos cursos on-line. Quem sabe fazer, ensina. Máscaras e luvas são os mais procurados. Mas quem está ganhando dinheiro com isso é quem entende de moda. As máscaras de crochê com desenhos de bocas realistas ficaram na moda por algum tempo, mas logo desistiram delas, porque as pessoas fugiam de quem as usava pensando que eram alguns malucos que ainda ousam andar desprotegidos.
Ah, sim. Tem algumas seitas que pregam ser seguro sair às ruas sem proteção. Podem ser vistos andando agrupados em plena luz do dia, sempre fugindo da polícia. Alguns chegaram a dar entrevistas para corajosos repórteres paramentados como astronautas:
— Mas vocês não têm medo de ser infectados?
— Cara, isso já passou. A epidemia está controlada.
— Mas vocês acreditam apenas nisso, ou também fazem aquelas reuniões para defender que a Terra é plana?
Até a criminalidade mudou de tática. Não há mais turistas ricos para serem assaltados. Aliás, as lojas agora só vendem on-line e ninguém mais viaja. Então o jeito é se passar por entregador. Num condomínio de luxo em São Paulo invadiram um apartamento e fizeram a limpa. Dois bandidos estavam disfarçados de entregador e outros dois entraram escondidos numa caixa de máquina de lavar. Quando o dono da casa lhes apontou uma arma, os bandidos baixaram as máscaras, ameaçaram tossir e a família se rendeu. Entre outros bens de valor, levaram muitos pacotes de papel higiênico e vários galões de sabonete líquido e álcool gel.
Antes de saírem, os cruéis meliantes fizeram questão de passar as mãos nuas no chão, nas paredes e maçanetas para evitar serem seguidos.
Nesse aparente apocalipse, acostumamo-nos a uma nova realidade sem aglomerações. Apesar dos milhões de divórcios, o mundo até parece mais romântico. Pegar na mão passou a ser uma intimidade extremamente pudica. Fazer isso em público pode resultar em prisão por atentado despudorado à saúde pública. Beijo? O que é isso? Aparentemente as próximas gerações nem saberão como nascem as crianças. E o mundo, afinal, será repovoado pelos teimosos.