30 de março de 2017

Os Novos Enlatados

Quando eu era adolescente, lembro que dávamos o nome de enlatados para produtos televisivos que eram apresentados na TV aberta. Acredito que tinham esse nome por serem produzidos nos Estados Unidos da América, serem fortemente imbuídos da cultura daquele país e servirem como divulgação e propaganda do American Way of Life.

Não sei se concordo com o termo para esse tipo de produto. Afinal, que tipo de cultura era esperado num produto produzido naquele país? Seriam os filmes de Bollywood também enlatados indianos?

Deixando aqueles enlatados de lado, acredito que hoje esse termo pode ser usado com muito mais propriedade para designar um outro tipo de produto. E esse produto é veiculado principalmente nas redes sociais e comunicadores instantâneos.

Sabe aquele grupo da família no Whatsapp? Sabe aquelas mensagens de Bom Dia que são enviadas todas as manhãs, invariavelmente, nesses grupos? Você acha que aquela sua tia que enviou a mensagem usou algum aplicativo para juntar a foto das flores com o texto de auto ajuda que veio na mensagem? Não. Ela pegou pronto de algum site ou repassou de outro grupo. E como chamamos àquilo que vem pronto para o consumo? Enlatado.



Pois bem. Junto com essas mensagens de Bom Dia, podemos colocar no mesmo balaio as correntes, as mensagens apocalípticas, os alertas do tipo “passe para todos os seus contatos”, as mensagens do gatinho de voz fina, as “videocassetadas”, e até os “pensamento do dia”. Tudo isso está pronto a ser repassado e se tornar viral. Há sites especializados em produzir esses conteúdos.

Há também as declarações de amizade e amor infinito que costumam terminar com “Passe para as pessoas que você ama, inclusive eu, se me amar”. Esse é o cúmulo do cúmulo! Mandar uma mensagem pronta pra um amigo e pedir que ele mande de volta pra você? Tem dó, né? Eu já não respondo as mensagens de Bom Dia, por serem enlatadas (ainda se fossem, no mínimo, digitadas por quem enviou…), imagina se vou mandar de volta uma mensagem que, claramente, a pessoa me repassou depois de receber de alguém. E, possivelmente, nem leu inteira.

Então, para aqueles que me acham insensível ou sem amor no coração por não responder os Bons Dias nem mandar de volta as mensagens que devem ser enviadas a quem se ama, está aqui a prova de que gosto de você. Dei-me o trabalho de escrever todo esse texto, que não copiei de lugar algum nem recebi pronto, para dizer que não respondo enlatados e que isso não significa que eu não goste de você. Significa apenas que eu tenho por princípio não repassar coisas prontas como se fosse algo pessoal.

Repasso, sim, piadas que acho engraçadas, textos que acho interessantes, mas sem dar a entender que aquilo é pessoal para alguém ou que eu o fiz pensando em alguém.

Obrigado pela compreensão.

(Coloque aqui seu nome e passe para todos os seus grupos de WhatsApp, ou cole no seu Facebook)

7 de março de 2017

A carranca e a tolerância


Preciso confessar que nem sempre meu raciocínio é rápido. Há vezes em que uma situação me incomoda e fico sem saber o porquê, ou sem resposta imediata para dar. Quando isso acontece, o assunto fica em minha cabeça martelando, como a dizer: “reflita, reflita, reflita”.

No ano passado participei de um evento em um clube de jovens católicos do qual meu filho fazia parte. Foi num fim de semana com a participação dos pais. E na hora do almoço, muitos assuntos vinham à baila.

Em certo momento, um desses pais — felizmente não me lembro do nome dele, assim não corro o risco de revelá-lo acidentalmente — chamou a atenção de todos para uma peculiaridade sobre a sede do clube. Havia na porta de entrada uma carranca: uma dessas esculturas entalhadas em madeira que eram usadas na proa de barcos que percorrem os rios das regiões norte e nordeste do país. Ele alertava sobre o perigo daquele símbolo pagão e a incompatibilidade dela com os objetivos das reuniões feitas naquele clube. Ele descreveu em detalhes que nem vale a pena lembrar o significado daquele símbolo para a cultura do povo que o produziu, sugerindo que o retirássemos.

Um dos responsáveis pelo clube alertou que a casa era alugada de um advogado que a cedeu para o clube, sem nada dela retirar, com a condição de que se zelasse pelos bens ali constantes. Toda a mobília, incluindo luzes, utensílios de cozinha, obras de arte e um imenso acervo bibliográfico foram confiados à administração do clube.

Esse homem insistiu que a carranca deveria ser removida e sugeriu que alegássemos ao proprietário que ela caiu da parede e se quebrou.

E foi esse o episódio que ficou martelando em minha cabeça durante toda uma semana. Após refletir bastante, cheguei à seguinte conclusão. O que era mais incompatível com os propósitos do clube: uma obra de arte, manifestação da cultura de um povo, que simbolizava uma suposta crença pagã, mas que naquele meio nada mais era do que um registro artístico, cultural e histórico, ou o ato de destruir uma propriedade privada deixada sob seu cuidado, encobrindo-a com uma mentira?

A carranca pode ter tido, no passado, um significado místico. Segundo as crenças de quem a esculpiu, sua cara enfezada espantava os maus espíritos e assombrações que amedrontavam os barqueiros que navegavam pelos rios. Hoje ela nada mais é que uma lembrança dessa era e pode, inclusive, ser usada para orientar as crianças que frequentam o clube sobre diversidade cultural, multiplicidade de crenças e tolerância.

Por outro lado, num lugar onde se busca educar as crianças numa fé cristã, a proposta de quebrar o objeto e mentir ao dono sobre o ocorrido é uma atitude totalmente contrária ao que é pregado ali. E o que me incomodou, entendo agora, foi o fato de ninguém se manifestar contrário a essa proposta. Ninguém questionou, criticou ou se opôs. Eu, inclusive.


Espero com esse texto corrigir meu erro, expondo minha aversão à sugestão desse pai.  Incoerente seria se render a uma superstição presente apenas em seu preconceito e cometer um ato abominável ao espirito cristão. A carranca nada mais é do que madeira entalhada. Acreditar que ela seja portadora de espíritos que prejudiquem ao clube é crendice. Acredito que ela deva ser mantida não só em respeito ao seu legítimo proprietário, mas também em respeito aos valores que ali são pregados.