Preciso confessar que nem sempre
meu raciocínio é rápido. Há vezes em que uma situação me incomoda e fico sem
saber o porquê, ou sem resposta imediata para dar. Quando isso acontece, o
assunto fica em minha cabeça martelando, como a dizer: “reflita, reflita,
reflita”.
No ano passado participei de um
evento em um clube de jovens católicos do qual meu filho fazia parte. Foi num fim
de semana com a participação dos pais. E na hora do almoço, muitos assuntos
vinham à baila.
Em certo momento, um desses pais
— felizmente não me lembro do nome dele, assim não corro o risco de revelá-lo
acidentalmente — chamou a atenção de todos para uma peculiaridade sobre a sede
do clube. Havia na porta de entrada uma carranca: uma dessas esculturas
entalhadas em madeira que eram usadas na proa de barcos que percorrem os rios
das regiões norte e nordeste do país. Ele alertava sobre o perigo daquele
símbolo pagão e a incompatibilidade dela com os objetivos das reuniões feitas
naquele clube. Ele descreveu em detalhes que nem vale a pena lembrar o
significado daquele símbolo para a cultura do povo que o produziu, sugerindo
que o retirássemos.
Um dos responsáveis pelo clube
alertou que a casa era alugada de um advogado que a cedeu para o clube, sem
nada dela retirar, com a condição de que se zelasse pelos bens ali constantes.
Toda a mobília, incluindo luzes, utensílios de cozinha, obras de arte e um
imenso acervo bibliográfico foram confiados à administração do clube.
Esse homem insistiu que a
carranca deveria ser removida e sugeriu que alegássemos ao proprietário que ela
caiu da parede e se quebrou.
E foi esse o episódio que ficou
martelando em minha cabeça durante toda uma semana. Após refletir bastante,
cheguei à seguinte conclusão. O que era mais incompatível com os propósitos do
clube: uma obra de arte, manifestação da cultura de um povo, que simbolizava
uma suposta crença pagã, mas que naquele meio nada mais era do que um registro
artístico, cultural e histórico, ou o ato de destruir uma propriedade privada
deixada sob seu cuidado, encobrindo-a com uma mentira?
A carranca pode ter tido, no
passado, um significado místico. Segundo as crenças de quem a esculpiu, sua
cara enfezada espantava os maus espíritos e assombrações que amedrontavam os
barqueiros que navegavam pelos rios. Hoje ela nada mais é que uma lembrança
dessa era e pode, inclusive, ser usada para orientar as crianças que frequentam
o clube sobre diversidade cultural, multiplicidade de crenças e tolerância.
Por outro lado, num lugar onde
se busca educar as crianças numa fé cristã, a proposta de quebrar o objeto e
mentir ao dono sobre o ocorrido é uma atitude totalmente contrária ao que é
pregado ali. E o que me incomodou, entendo agora, foi o fato de ninguém se
manifestar contrário a essa proposta. Ninguém questionou, criticou ou se opôs.
Eu, inclusive.
Espero com esse texto corrigir
meu erro, expondo minha aversão à sugestão desse pai. Incoerente seria se render a uma superstição
presente apenas em seu preconceito e cometer um ato abominável ao espirito
cristão. A carranca nada mais é do que madeira entalhada. Acreditar que ela
seja portadora de espíritos que prejudiquem ao clube é crendice. Acredito que
ela deva ser mantida não só em respeito ao seu legítimo proprietário, mas
também em respeito aos valores que ali são pregados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Os comentários são moderados, pois ofensas e palavras de baixo calão não serão aceitas. Não bloquearei opiniões contrárias. Valorizo o contraditório, desde que haja respeito.