7 de março de 2017

A carranca e a tolerância


Preciso confessar que nem sempre meu raciocínio é rápido. Há vezes em que uma situação me incomoda e fico sem saber o porquê, ou sem resposta imediata para dar. Quando isso acontece, o assunto fica em minha cabeça martelando, como a dizer: “reflita, reflita, reflita”.

No ano passado participei de um evento em um clube de jovens católicos do qual meu filho fazia parte. Foi num fim de semana com a participação dos pais. E na hora do almoço, muitos assuntos vinham à baila.

Em certo momento, um desses pais — felizmente não me lembro do nome dele, assim não corro o risco de revelá-lo acidentalmente — chamou a atenção de todos para uma peculiaridade sobre a sede do clube. Havia na porta de entrada uma carranca: uma dessas esculturas entalhadas em madeira que eram usadas na proa de barcos que percorrem os rios das regiões norte e nordeste do país. Ele alertava sobre o perigo daquele símbolo pagão e a incompatibilidade dela com os objetivos das reuniões feitas naquele clube. Ele descreveu em detalhes que nem vale a pena lembrar o significado daquele símbolo para a cultura do povo que o produziu, sugerindo que o retirássemos.

Um dos responsáveis pelo clube alertou que a casa era alugada de um advogado que a cedeu para o clube, sem nada dela retirar, com a condição de que se zelasse pelos bens ali constantes. Toda a mobília, incluindo luzes, utensílios de cozinha, obras de arte e um imenso acervo bibliográfico foram confiados à administração do clube.

Esse homem insistiu que a carranca deveria ser removida e sugeriu que alegássemos ao proprietário que ela caiu da parede e se quebrou.

E foi esse o episódio que ficou martelando em minha cabeça durante toda uma semana. Após refletir bastante, cheguei à seguinte conclusão. O que era mais incompatível com os propósitos do clube: uma obra de arte, manifestação da cultura de um povo, que simbolizava uma suposta crença pagã, mas que naquele meio nada mais era do que um registro artístico, cultural e histórico, ou o ato de destruir uma propriedade privada deixada sob seu cuidado, encobrindo-a com uma mentira?

A carranca pode ter tido, no passado, um significado místico. Segundo as crenças de quem a esculpiu, sua cara enfezada espantava os maus espíritos e assombrações que amedrontavam os barqueiros que navegavam pelos rios. Hoje ela nada mais é que uma lembrança dessa era e pode, inclusive, ser usada para orientar as crianças que frequentam o clube sobre diversidade cultural, multiplicidade de crenças e tolerância.

Por outro lado, num lugar onde se busca educar as crianças numa fé cristã, a proposta de quebrar o objeto e mentir ao dono sobre o ocorrido é uma atitude totalmente contrária ao que é pregado ali. E o que me incomodou, entendo agora, foi o fato de ninguém se manifestar contrário a essa proposta. Ninguém questionou, criticou ou se opôs. Eu, inclusive.


Espero com esse texto corrigir meu erro, expondo minha aversão à sugestão desse pai.  Incoerente seria se render a uma superstição presente apenas em seu preconceito e cometer um ato abominável ao espirito cristão. A carranca nada mais é do que madeira entalhada. Acreditar que ela seja portadora de espíritos que prejudiquem ao clube é crendice. Acredito que ela deva ser mantida não só em respeito ao seu legítimo proprietário, mas também em respeito aos valores que ali são pregados.

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