Um conhecido
meu veio criticar a meritocracia em uma postagem que fiz no Facebook. O
argumento dele era de que, por mais que a pessoa se esforce, quem está
realmente lá embaixo na cadeia alimentar da sociedade não tem chances de
crescer. Concordo que para muitas pessoas as barreiras sejam muito maiores. Uma
pessoa que mora na favela, sem luz nem esgoto, tem muito mais dificuldades para
concluir um curso superior que uma pessoa que teve condições de pagar por uma
escola de qualidade, que não precisou de transporte público e que tinha um plano
de saúde que não o obrigava a esperar em filas.
Mas, apesar
dos argumentos dele, eu ainda acredito na meritocracia. Porque eu sei que minha
mãe foi pobre, muito pobre, e conseguiu se formar em medicina. Eu sei que
estudei muito pra entrar numa faculdade super concorrida apesar de muita gente
ficar falando que era impossível. Eu sei que aquela menina, a Bruna, que passou
em primeiro lugar na medicina da USP também ralou de estudar (http://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/02/jovem-negra-e-pobre-que-passou-em-1o-lugar-no-curso-mais-cobicado-do-brasil.html).
Apesar do crédito que ela dá ao cursinho que fez, com professores que eram
alunos da faculdade, quem estudou pra fazer a prova foi ela. Foi ela que
procurou o cursinho e se inscreveu nele por saber que a escola pública não a
prepararia adequadamente para o vestibular. Foi ela que percebeu que não tinha
ido bem no ENEM e se inscreveu na Fuvest pra ter uma chance a mais de entrar.
Foi ela que ficou ali diante da prova queimando os neurônios pra resgatar o
conhecimento que ela sabia estar em algum lugar de sua memória. Não foi o
cursinho que fez a prova pra ela. Não foi o cursinho que passou no exame e
conquistou a vaga. Foi ela. Se ela não quer acreditar que teve esse mérito, o
tempo talvez se encarregue de fazê-la mudar de ideia.
Pois na
faculdade ela terá uma grande vantagem sobre seus colegas. A dedicação que ela
precisou dar aos estudos foi muito maior que a da maioria de seus colegas aprovados.
Ela já tem um aprendizado que muitos ainda sofrerão pra adquirir. Ela aprendeu
a estudar, a buscar o conhecimento por conta própria, pois na faculdade as
lições não virão mastigadinhas como num cursinho preparatório. Nesse processo,
alguns vão bombar, outros vão sofrer, e ela vai seguir como um maratonista que
deixa os demais corredores vários metros para trás. Não que ela vá ter mais
facilidade. Ela vai suar como todo mundo, mas estará com mais preparo.
Ainda assim,
os argumentos desse amigo me martelavam a cabeça, pois realmente algumas
pessoas vão ter barreiras muito maiores que outras. E fiquei raciocinando sobre
esse argumento para chegar à conclusão que apresento aqui.
O mundo é
injusto. Não tenho mais ilusões a respeito disso. Vai ser difícil mudar essa
condição. Há lugares onde essa injustiça é menor. No Brasil, é enorme. E o
argumento dele aponta pra essa injustiça, não pra meritocracia. O exemplo da
Bruna mostra que a meritocracia em que acredito continua válida. As barreiras
para ela são maiores por conta da injustiça, mas não porque a meritocracia é
uma falácia (http://jornalggn.com.br/fora-pauta/o-mito-da-meritocracia).
A própria
menina acredita nessa meritocracia, afinal ela lutou e enfrentou barreiras
enormes para conquistar o seu espaço. Lutou mais do que outros, com posses. Mas
lutou. Se ela, realmente, não acreditasse que era possível mudar sua condição
socioeconômica, pra que se esforçaria tanto? Esse mesmo colega, estudou
engenharia pra quê? Cinco anos de sacrifício apenas por amor ao conhecimento? E
por que mudou de emprego para uma função mais elevada e com salário maior? Não
foi porque ele acredita que tem valor e direito a uma condição melhor que
aquela em que estava?
No
dicionário, meritocracia significa a crença de que as pessoas com mais valor
(mérito) conquistam as posições de maior poder. É a lei da selva aplicada à
sociedade civil: a lei do mais forte. Não necessariamente o mais forte
fisicamente, mas o mais preparado, o mais adaptado. Seleção natural in natura.
Numa sociedade injusta e corrupta como o Brasil, o mérito, muitas vezes, reside
na capacidade de roubar sem ser apanhado. Porém eu me recuso a aceitar isso
como uma condição permanente. Nós, cidadãos honestos, devemos nos unir pra
lutar contra isso. Devemos continuar lutando pra reduzir a desigualdade de
condições. Quem usa de desonestidade numa competição é trapaceiro. Isso vale
pra quem cola na prova, quem pede ou dá atestado médico falso, quem fura fila,
quem pede nota maior que o valor da refeição para ser reembolsado pela
empresa... É isso que vai mudar o Brasil? Não. Mas isso tudo é um reflexo da
injustiça que impera nessa nossa sociedade. Devemos lutar pela punição dessas
injustiças, inibi-las. Aí, talvez, as pessoas comecem a valorizar os políticos
que não são corruptos, mesmo que eles não sejam aqueles com melhores discursos,
que prometem mais nas campanhas ou que compram votos. Aí, talvez, o povo vá às
ruas por políticas anticorrupção e por regras igualitárias para humildes e
poderosos.
Criticar a
meritocracia é um discurso esquerdista que defende um Estado inchado e
populista, protecionista, que se intromete em tudo e não dá liberdade para as
coisas se ajeitarem por conta própria. De acordo com uma visão Marxista (https://medium.com/@marcelorcampos/marx-o-maior-defensor-da-meritocracia-b3c4b84154fa#.t0ut90m2m)
do trabalho, seu valor seria proporcional ao esforço nele empregado. Essa
teoria já foi refutada pelos economistas, que afirmam, e a experiência
comprova, que o valor de um trabalho está ligado à sua utilidade. O exemplo
mais ilustrativo disso é que se um homem gasta doze horas numa marcenaria
fabricando uma mesa, e outro gasta quinze horas cavando um buraco, as pessoas
ainda pagarão mais pela mesa que pelo buraco. Portanto, o trabalho é
recompensado pela sua utilidade, e não pelo esforço nele empregado.
Há uma
historinha sobre um trabalhador que foi se queixar ao chefe, pois um
funcionário recém contratado fora promovido antes dele, que já estava na
empresa havia anos (https://atitudereflexiva.wordpress.com/2009/09/04/a-licao-do-abacaxi/).
Essa história também ilustra bem como o valor está associado à utilidade e não
ao tempo ou esforço empregado.
Vejam que
Marx defendia o valor do trabalho de acordo com o esforço pois essa crença era
necessária para defender seu ponto de vista: a mais-valia, a exploração da
mão-de-obra e a luta de classes. E onde fica a meritocracia, então?
Indo de
encontro às teorias marxistas, o ser humano reage, basicamente a estímulos. Sem
incentivo, o ser humano não produz. E esse é o principal motivo pelo qual o
socialismo e o comunismo nunca deram certo em lugar nenhum. Quem é que vai
querer estudar cinco anos de engenharia, seis de medicina, ou até dois anos de
educação física, pra ganhar o mesmo que um trabalhador que exerce uma função
que não exige nenhuma qualificação? Quer um exemplo? Imagine um restaurante.
Nesse restaurante há o chef, os cozinheiros e os faxineiros. O chef ganha mais
que os cozinheiros que, por sua vez, ganham mais que os faxineiros. Mas todos
trabalham o mesmo número de horas por dia. Um faxineiro, então, lidera uma
greve pois percebe que seu trabalho é importantíssimo para o restaurante, já
que a vigilância sanitária pode fechar o restaurante se as condições de higiene
não forem adequadas. Eles entram, então, em greve e, por um dia, o restaurante
vira um caos. O chef redistribui o trabalho e põe alguns cozinheiros para
fazerem a faxina, afinal a vigilância sanitária está sempre de olho. Todos os
cozinheiros, inclusive o chef, nesse dia se sacrificam demais, mas o
restaurante sobrevive. No dia seguinte o que acontece? O restaurante fecha?
Mais alguém entra em greve? O chef pede as contas? Nada disso! Tudo volta à
rotina anterior pois o chef contrata novos faxineiros e coloca os grevistas na
rua. Mas e a importância do trabalho dos faxineiros? Não era essencial para o
restaurante? Sim, mas não exige qualificação. Há muitas pessoas procurando
emprego que nunca pegaram numa vassoura, mas diante da necessidade estão
dispostos a aprender e trabalhar no restaurante.
Continuando, por
que os cozinheiros ganham menos que o chef? Porque o chef é quem cria os
pratos, desenvolve os processos de produção e coordena a cozinha. Os
cozinheiros são capazes de fazer tudo isso? Certamente, com o aprendizado e a
experiência, um dia serão. E nesse dia serão convidados a serem chefs em outros
restaurantes ou abrirão seus próprios negócios. Isso é meritocracia. Mas
enquanto não tiverem preparo suficiente, o chef é quem ditará o sucesso da
cozinha.
Veja que nem
todo mundo pode abrir um restaurante bem-sucedido. Mas isso não tem nada a ver
com meritocracia. Aquele que pode, é porque focou em seu objetivo, juntou
dinheiro pra montar o restaurante, foi cozinheiro por vários anos e aprendeu o
que pôde, cada detalhe do negócio, observando, obedecendo, experimentando,
errando e tentando de novo até acertar. Um outro podia até cozinhar bem, mas se
não aprendeu coisas novas, se não experimentou novos sabores e temperos, se não
praticou em casa seus próprios pratos, então ele não se esforçou, não teve
mérito. Talvez até tivesse dinheiro pra abrir seu restaurante, mas será que
duraria? Faria sucesso?
Então, o fato
de o mundo ser injusto não significa que a meritocracia é uma ilusão. Significa
que o mundo é injusto, só isso. As pessoas não começam a corrida com a mesma
velocidade inicial. Alguns até a começam vários passos à frente. Os que estão
atrás terão de correr mais para alcançá-lo. Mas assim como na fábula da lebre e
do jabuti, algumas lebres dormirão no ponto e serão fatalmente ultrapassadas. A
diferença em relação ao mundo real é que, à medida que avança na pista, o
jabuti vai ficando mais equiparado à velocidade das lebres por que vai
passando.
Concluo que o
posicionamento desse colega contradiz suas atitudes. Apesar de criticar a
meritocracia e defender que ela não existe, ele não age de acordo com esse
ponto de vista. Afinal, ele acabou de mudar de emprego em busca da ascensão
social e econômica que julga merecer. Mas se a meritocracia, como ele diz, não
existe, por que o esforço. Ah! Mas ele tem facilidades, teve oportunidades que
outros não tiveram! Sim, concordo. Mas se a meritocracia não existe, pra que se
esforçar? Ora. Porque ele sabe que se ficar parado, os jabutis vão começar a
ultrapassá-lo. E ele sabe também que há algumas lebres preguiçosas na frente
dele, que ele pode vencer.
Pois eu digo
que, assim como a Bruna, que passou em primeiro lugar na medicina da USP, ele
também acredita em meritocracia, por mais que negue. Seus atos o comprovam.